Até onde vai o poder de organização dos presos dentro de uma cadeia? Na Penitenciária Lemos Brito (PLB), no Complexo da Mata Escura, as leis impostas pelos detentos chegaram ao ponto de ser digitadas, impressas, encadernadas e distribuídas entre os internos.
A direção da PLB apreendeu no portão principal do complexo parte do que seria um rigoroso código de ética e comportamento confeccionado fora da penitenciária. A ideia de produzir o material partiu do Pavilhão 1, cuja liderança é atribuída ao traficante Raimundo Alves de Souza, o Ravengar, apontado como o homem que pensa e dita as regras dentro daquele módulo.
Inspirada na bandeira nacional, a comissão de internos que se autointitula Ordem & Progresso assume a autoria da publicação. “Sancionada” e “publicada” quatro meses atrás, só agora a cartilha veio à tona. O CORREIO teve acesso com exclusividade a uma cópia do regimento, que traz logo na sua primeira página uma exposição dos objetivos da publicação e deixa claro que a lei é para todos, principalmente para os iniciantes: “O objetivo dessa cartilha é ensinar a doutrina de comportamento na prisão, do preso primário e seus cinco dias de observação”.
Tom jurídico
Como qualquer código oficial, o documento publicado pela comissão usa o tom jurídico para estabelecer as regras. A diferença são os termos utilizados nos tópicos. Nas leis da cadeia não há artigos, mas “Obediências”. Em cada uma está prevista uma punição, como a que é direcionada para os presos que “subtraírem” pertences de outros detentos. “(...) para continuar a conviver em nossa comunidade, prestará serviços de faxineiro na varrição do pátio e orar um Pai-nosso, ou pregar os joelhos no chão”.
Entre outras coisas, a cartilha traz regras de etiqueta para os dias de visitação, prevê punições severas para agiotagem e é implacável com os presos que mantiverem relações amorosas com ex- mulheres e familiares dos colegas.
Em alguns momentos, o código parece ensinar ao Estado a melhor forma de ressocializar o contingente carcerário. “O princípio básico do alicerce humano reside na educação”. Uma das regras deixa claro que os presos querem impor quais detentos devem permanecer em cada módulo. A punição para quem faltar a “Obediência III” é a retirada do preso do convívio dos demais, o que significaria a sua transferência. “ Odireito de defesa será dado ao acusado na possível primeira falta. Na reincidência, deixará automaticamente o nosso convívio”.
Punições violentas
Ao longo do texto, as obediências são complementadas com o que seriam os incisos, intitulados de “Reflexão” ou “No passado”, nos quais são resgatados casos anteriores de punições violentas para o caso de descumprimento de princípios. Em outros trechos, o documento critica diretamente o órgão responsável pela administração da unidade. “Apesar dos projetos desenvolvidos pela Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, ainda há muito a se fazer (...). A falta de instrumentos jurídicos no acompanhamento das penas é o que faz nós presos perdermos a esperança (...) e delinquir dentro do próprio sistema prisional”.
O nível de organização dos detentos e a ousadia em imprimir e encadernar o material surpreenderam o atual superintendente de Assuntos Penais da SJCDH, Isidoro Orge, então diretor da PLB quando a cartilha foi impressa. Às mãos de Orge chegaram 15 exemplares do manual. “O próprio Ravengar me entregou cópias da cartilha e pediu que fossem enviadas ao MP, Defensoria Pública, SJCDH e Vara de Execuções Penais para se tornar um código geral”. Mas as “dicas” do apenado foram rejeitadas.
O superintendente garantiu que a cartilha não entrou no pátio, apesar de presos e carcereiros afirmarem que as normas são a “bíblia” do pavilhão 1. “Deixamos claro que nenhum preso tem autonomia para ditar regras. Essa cartilha é uma afronta ao estado de direito”.
Incineração
Dias após a recusa de Orge, caixas com cópias do manual foram encaminhadas para a penitenciária. O secretário de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, Nelson Pelegrino, disse que ordenou a incineração do material. “As caixas chegaram e mandei queimar tudo. Não há possibilidade de serem aplicadas normas feitas por presos”.
Há quase um ano e meio, diz ele, o chamado Comitê Gestor da Segurança, que reúne representantes da segurança, justiça e direitos humanos, já discute um regimento interno para ser aplicado em todas as unidades prisionais do estado. Pelegrino destacou que o código está na Casa Civil aguardando decreto do governador Jaques Wagner.
Juíza surpreendida
A primeira reação foi de sobressalto. A juíza de Execuções Penais, Andremara Santos, ficou impressionada quando teve pela primeira vez em suas mãos, na segunda-feira (5), através do CORREIO, o código de ética publicado pelos presos. Pegou o celular e discou imediatamente para o superintendente de Assuntos Penais da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos (SJCDH), Isidoro Orge. “Por que um documento desses não veio parar nas minhas mãos? Por que não me mandaram isso?”, indagou a juíza. “Eu teria tomado providências”, disse ao superintendente.
Para Andremara, o material é subversivo. A juíza admitiu que sabia da existência de uma cartilha, mas não foi informada de que se tratava de documento tão ousado. “Um material desses precisa ser levado em conta. Em vez de desdenhar, a gente tem que perguntar o que o Estado está fazendo pela disciplina na cadeia”.
Logo que terminou a entrevista, Andremara solicitou à sua secretária que enviasse ofício requerendo o material completo. Disse que, após estudar o “estatuto”, pretende enviar uma carta a cada um dos presos, destacando seus direitos e deveres. “Os presos só se submetem porque se sentem desamparados”.
Diretor minimiza
O diretor da Penitenciária Lemos Brito (PLB), Márcio Amorim de Marcelo, afirmou não ver problema na criação e formalização de normas por um interno. “São regras de controle, que já eram vigentes e valiam no dia-a-dia. Eles sentiram a necessidade de organizar convenções”, disse.
Segundo ele, cada um dos quatro pavilhões da unidade adota regras próprias de conduta, mas nenhum chegou a reuni-las em uma cartilha, como fez o pavilhão 1. Há dois meses na direção da unidade, Amorim afirmou que a cartilha não é vista mais circulando no Pavilhão 1, caracterizado pela tranquilidade e organização.
Segundo ele, as orientações para a conduta dos presos vão prevalecer, desde que não contrariem as regras da administração. “Não vejo (a cartilha) influenciar no cumprimento das normas impostas pela casa”, justifica. O diretor da PLB defende que este tipo de “organização” facilita o diálogo entre a administração e os internos - representados sempre por uma liderança.
Para o defensor da Vara de Execuções Penais Rafson Ximenes, a adoção de normas de convivência entre os presos é inevitável no sistema carcerário Ele, no entanto, desmistifica a cartilha, tratando-a como algo apenas peculiar. “A organização dos presos é inevitável em qualquer prisão do mundo. A única diferença, nesse caso, é que eles colocaram no papel, o que é uma afronta ao Estado. É ilusão achar que o Estado vai controlar as regras de convivência dos presos na cadeia. Esse código é mais cômico e menos relevante do que se imagina”, opina.
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